A Jerónimo Martins tem uma reputação invejável entre os investidores, nacionais e internacionais.
Um amigo meu, quando fala do seu investimento de longa data nas ações da Jerónimo Martins, diz o seguinte:
Gente séria é outra coisa.
No clássico Ganhar em Bolsa, de Fernando Braga de Matos, é referido que a resiliência das ações da Jerónimo Martins advém do apoio que a empresa tem de investidores institucionais estrangeiros.
Nesta análise irei percorrer grande parte da história da Jerónimo Martins em bolsa e procurar tecer perspetivas para o futuro.
1. Apresentação
1.1. História
A origem da Jerónimo Martins remonta a 1792, quando um jovem oriundo da Galiza, chamado Jerónimo Martins, abriu um modesto estabelecimento comercial na Rua Garrett, no Chiado, em Lisboa.
A loja tinha produtos de muita qualidade e foi atraindo uma clientela ilustre, incluindo membros da realeza, pelo que foi crescendo em dimensão e notoriedade, ao longo dos séculos XIX e XX:
Em 1920 a loja foi vendida a dois empresários do Porto, Elísio Pereira do Vale e Francisco Manuel dos Santos, pela quantia de 1 milhão de escudos, ou seja, cerca de 5 mil euros, o equivalente a cerca de 622 mil euros atuais (considerando uma taxa média anual de inflação de 4%).
Esta loja icónica infelizmente ardeu totalmente no grande incêndio do Chiado de agosto de 1988.
Em 1938 Francisco Manuel dos Santos passou o testemunho ao seu genro, Elísio Alexandre dos Santos, que em 1944 decidiu orientar o Grupo Jerónimo Martins para a área industrial, abrindo a fábrica de margarinas FIMA e estabelecendo uma parceria industrial com a holandesa Unilever em 1949. O meu sogro trabalhou 40 anos na fábrica de gelados Olá em Portugal, que era detida pela Jerónimo Martins e pela Unilever.
Em 1968 Elísio dos Santos faleceu e foi o seu filho, Alexandre Soares dos Santos…
…que ficou ao leme do Grupo, lançando a semente do Pingo Doce em 1978, com as primeiras lojas a abrirem em 1980. A parceria com a holandesa Ahold (que detém 49% do Pingo Doce) foi estabelecida em 1992 e atualmente existem 479 supermercados Pingo Doce em Portugal.
A entrada na Polónia deu-se em 1994 quando adquiriram a cadeia de lojas de desconto Eurocash, tendo mudado o nome para Biedronka e expandindo-a através de uma série de aquisições que alavancaram muito o balanço do Grupo Jerónimo Martins, que entretanto também tinha entrado no Brasil.
Os anos de 1999 – 2004 foram passados numa dura reestruturação financeira que levou à saída do Brasil e à alienação de vários ativos considerados não estratégicos.
Em 2015, cerca de 20 anos depois de chegar à Polónia, a Jerónimo Martins tornou-se a maior retalhista de bens alimentares polaca e em 30 de setembro de 2023 já existiam 3.473 lojas Biedronka e 328 lojas Hebe (parafarmácias).
O Recheio – lojas de retalho grossista em Portugal – foi adquirido pela Jerónimo Martins em 1988 quando tinha apenas 4 lojas e agora tem 43.
A cadeia de lojas de bairro e mini mercados Amanhecer (marca popular vendida no Recheio) foi criada em 2009 e hoje tem mais de 200 unidades independentes.
Finalmente, em 2011 a Jerónimo Martins atravessou o Oceano Atlântico e lançou, na Colômbia, a insígnia Ara, que já conta com 1.241 lojas.
Em 2013 Alexandre Soares dos Santos passou o testemunho ao seu filho, Pedro Soares dos Santos…
…antes de falecer no dia 19 de agosto de 2019.
Agradeço o seu legado e desejo paz à sua alma!
1.2. Estrutura Acionista
Lembra-se do Francisco Manuel dos Santos, o empresário do Porto que em 1920 adquiriu com um sócio a loja original do Chiado?
Uma sociedade com o seu nome, que é controlada pela Família Soares dos Santos, é a maior acionista da Jerónimo Martins, com 56,1% do capital:
Os restantes 9 maiores acionistas são fundos estrangeiros, sendo que atualmente nenhum tem mais do que 2% do capital.
1.3. Equipa de Gestão
O Chairman e CEO desde dezembro de 2013 é Pedro Soares dos Santos, que ingressou na Jerónimo Martins em 1983, quando tinha apenas 23 anos:
Atualmente tem 63 anos.
Pedro Soares dos Santos é o “Presidente e Administrador-Delegado”, que depois é apoiado por 10 administradores, entre os quais está o seu irmão mais novo, José Soares dos Santos.
Dos 10 administradores, 6 são estrangeiros e 4 são mulheres.
2. Gráfico desde a OPV
A OPV da Jerónimo Martins foi em novembro de 1989, mas o software de análise técnica Metastock só fornece o gráfico desde maio de 1994:
O drawdown entre o máximo de 1999 e o mínimo de 2002 chegou aos 87% e foi plenamente justificado pelas mudanças nos fundamentais, como veremos a seguir.
Desde esse mínimo de 2002, nos 0,93 €, que a Jerónimo Martins tem sido uma história de muito sucesso e retorno para os investidores de longo prazo.
A ação valorizou 2.283%, o que dá uma taxa média anual de retorno de 16,3%, sem contar com os dividendos.
Desde 2002 a Jerónimo Martins pagou 6,56 € por ação em dividendos aos seus acionistas e o dividend yield médio foi de 3,3%, o que eleva o total return desde aquele mínimo de 2002 para cerca de 19,6% ao ano.
3. Tendências Fundamentais
3.1. N.º de Ações Emitidas, Capitalização Bolsista e Enterprise Value
Em 2003, para fazer face a uma situação financeira delicada, a Jerónimo Martins teve de se financiar no mercado de capitais, elevando o n.º de ações emitidas para cerca de 629 milhões, número que manteve até hoje:
Em 2002 o valor de mercado da Jerónimo Martins era de apenas 645 M€ e agora, à cotação de 20 €, está nos 13.926 M€, sendo a 3ª empresa mais valiosa da Euronext Lisboa, atrás da EDP e da EDP Renováveis.
Se à capitalização bolsista somarmos a dívida líquida e o valor dos interesses minoritários obtemos o Enterprise Value, que está nos 16.248 M€:
3.2. Receitas e Price to Sales Ratio
Em 1998 as receitas da Jerónimo Martins (JMT) foram de 2.991 M€ e em 2023 espera-se que atinjam os 30.313 M€, ou 10,1 vezes mais:
A taxa média anual de crescimento das receitas foi de 9,7% e os analistas que a seguem esperam que as receitas cresçam ao ritmo médio anual de 10,6% até aos 38.019 M€ em 2026.
Como é normal nas retalhistas de bens alimentares, a JMT tem transacionado com um Price to Sales Ratio inferior à unidade. A valorização atual, nos 0,5 das vendas anuais, é igual à média histórica.
3.3. EBITDA e Múltiplos do EBITDA
Em 2002 o EBITDA (Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization) foi de 264 M€ e para 2023 a estimativa média aponta para 2.090 M€, o que dá uma taxa média anual de crescimento de 10,4%, ligeiramente acima do crescimento das receitas:
Note-se que o indicador EV/EBITDA está numa zona que, historicamente, representou subavaliação.
3.4. Margens EBITDA, Operacional e Líquida
Neste gráfico já é possível vislumbrar o descalabro que foram os anos de 2000 – 2 para a Jerónimo Martins, com a margem líquida a mergulhar em território negativo:
De resto a margem líquida oscilou entre o máximo de 3,5% em 2011 e o mínimo de 1,6% em 2020, o ano da pandemia covid-19.
Desde 2003 a margem líquida média da JMT foi de 2,6%.
Veremos mais adiante que é normal as empresas da indústria da distribuição alimentar terem margens muito finas, porque é uma indústria muitíssimo competitiva.
Os analistas que seguem a JMT recentemente alteraram as suas estimativas para a margem líquida dos próximos anos, de uma expansão até aos 3,5% para uma manutenção nos 2,5%, provavelmente porque a colombiana Ara deixou novamente de ser lucrativa.
3.5. Resultado Líquido e PER
O resultado líquido da JMT aumentou dos 58 M€ em 2003 para os 755 M€ estimados em 2023, o que a confirmar-se será um recorde histórico:
Nesse período a taxa média anual de crescimento do lucro foi de 13,7%, acima do crescimento das receitas e do EBITDA, o que é sinal de alguma alavanca operacional e de boa gestão.
Historicamente a JMT foi valorizada pelos investidores com um PER, grosso modo, entre 15 e 25, sendo que atualmente, tendo em conta a projeção de lucro para 2023, nos 755 M€, o PER23 está nos 18, ou seja, mais para o subavaliado.
Os analistas estão otimistas para o futuro da JMT e estimam que a empresa obterá um lucro de 967 M€ em 2026. A acontecer isso representará uma taxa média anual de crescimento, face ao lucro de 2021, que foi de 463 M€, de 15,9%.
PER de 18 por uma empresa que se espera que aumente o lucro à taxa média anual de 16% pode ser considerado barato, ou atrativo.
3.6. Dívida Líquida e Net Debt to EBITDA
O aumento da dívida líquida em 2019 não foi bem real, porque foi devido a uma alteração nas normas contabilísticas (IFRS 16), que passou a considerar os leasings a mais de 12 meses como dívida financeira:
No dia 30 de setembro de 2023 a JMT tinha 1.761 M€ em cash e equivalentes e uma dívida financeira total de 3.840 M€, que inclui 3.039 M€ de leasings imobiliários, que são naturalmente lojas em que a JMT fez uma operação de sale & leaseback.
Se fosse com a contabilidade antiga – ou seja, não contando com os leasings imobiliários – a JMT teria uma posição de net cash de 960 M€.
O cash e equivalentes menos a dívida financeira total dá os 2.079 M€ de dívida líquida, que dividida pelo EBITDA esperado em 2023, nos 2.090 M€, dá 0,99 no rácio Net Debt to EBITDA, um valor que considero confortável e adequado.
4. Comparação com Congéneres Europeias e Americanas
Os investidores interessados em retalhistas de bens alimentares têm bastante escolha na Europa e nos Estados Unidos.
Na tabela seguinte inseri os dados de algumas empresas europeias e norte-americanas desta indústria:
Para facilitar a leitura da tabela vou escrever quatro comentários:
1 – A JMT é a empresa em que os analistas esperam um crescimento das receitas mais forte, com a Taxa Média Anual de Crescimento nos 7,8%;
2 – A espanhola DIA e a francesa Casino estão com PSRs muito baixos porque os investidores receiam que não sobrevivam à intensa concorrência e também porque têm balanços desequilibrados;
3 – As duas gigantes norte-americanas – Walmart e Costco – estão com múltiplos de valorização bem acima da média, mostrando que os investidores se sentem confortáveis e premeiam a dimensão;
4 – As estimativas para a TMAC do Lucro da JMT baixaram dos 16,6% no início de 2023 para os 8,6% agora. Ainda assim estão acima da média da indústria, que está nos 6,7%;
5. Fatores de Risco
A JMT vende essencialmente bens de primeira necessidade pelo que acaba por ser menos afetada pelo ciclo económico que a média dos negócios. É por isso uma ação defensiva.
No entanto, ao ter operações muito relevantes em duas geografias com moeda diferente do Euro, tem risco cambial.
Nos últimos cinco anos o Zloty polaco desvalorizou somente 3,2% face ao Euro…
…mas o Peso Colombiano desvalorizou 16,3%:
Estas desvalorizações cambiais são acompanhadas de inflação local que permite à JMT subir os preços na mesma proporção, de forma a que as receitas e lucros em Euros se mantenham mais ou menos estáveis.
Porém se houver uma desvalorização violenta de qualquer uma destas moedas – como aconteceu por exemplo no Bolívar venezuelano e numa dimensão menor mas ainda assim muito prejudicial, no Kwanza angolano – a JMT sofrerá.
Um investidor em ações da JMT deverá ter alguma atenção aos desenvolvimentos macroeconómicos em Portugal, Polónia e Colômbia, especialmente ao nível da inflação e taxas de câmbio destes dois países estrangeiros.
Um segundo risco óbvio é o da concorrência, que nesta indústria é muitíssimo feroz, por isso é que as margens são tão baixas e não é possível aumentá-las de forma significativa. A espanhola DIA Supermercados (em Portugal usa a marca Minipreço) está em suporte de vida e pode fechar a qualquer momento. Em 2021 uma pequena rede de supermercados holandesa, a DEEN, foi à falência, com as suas 80 lojas a serem compradas pelos concorrentes maiores, incluindo a Ahold Delhaize que ficou com 38 lojas. A Casino Guichard também está num processo de reestruturação financeira que irá diluir muitíssimo os acionistas pré-existentes.
Portanto, nesta indústria, como em todas as outras, existirão empresas vencedoras e vencidas.
A JMT já tem uma dimensão e um balanço que nos permite confiar que será uma das vencedoras.
Ainda uma questão que considero curiosa: durante a pandemia falou-se muito sobre caixas automáticas e até supermercados sem caixas, algo que a Amazon inventou com o Amazon GO e que o Continente implementou numa das suas lojas em Lisboa.
Porém, concorrentes como a Mercadona fazem gala de terem muitos empregados, numa estratégia que apela também à consciência social dos consumidores. Do que tenho visto na Mercadona das Caldas da Rainha (um sucesso estrondoso) esta ideia contracorrente de ter muitos empregados e de lhes pagar acima da média… está a dar resultado!
Ainda bem que a Mercadona só está em Espanha (onde a JMT e a Sonae não estão) e em Portugal (que atualmente não representa muito para a JMT (20,3% das Vendas), mas muito para a Sonae (100% das Vendas do Continente), mas a Sonae é um conglomerado com muito mais do que distribuição alimentar).
Existem mais dois riscos que é importante mencionar:
1º – As receitas da JMT aumentaram muito devido à inflação alimentar, porém essa inflação está a diminuir de forma veloz e há analistas, nomeadamente os do JP Morgan, que esperam que em 2024 já haja deflação alimentar, o que iria deprimir o crescimento das receitas, da JMT e de todas as outras retalhistas alimentares;
2º – As receitas e lucros da Biedronka beneficiaram, em 2022 e 2023, com o influxo de mais de 5 milhões de refugiados ucranianos na Polónia. Felizmente a maior parte desses ucranianos já voltou às suas casas na Ucrânia e o mais provável é que voltem praticamente todos nos próximos trimestres. Este desenvolvimento poderá prejudicar as vendas e lucros da Biedronka e consequentemente da JMT em 2024.
6. Perspetivas
É interessante verificar que, apesar dos resultados de 2023 estarem a surgir acima das expetativas, os analistas se mostram menos otimistas para o futuro, especialmente em termos de margens.
Este corte de estimativas provavelmente ocorreu porque a colombiana Ara, que se esperava que se fosse tornando cada vez mais lucrativa, este ano está a contribuir menos para o EBITDA da JMT:

Penso que isto acontece porque a Colômbia tem sofrido um forte abrandamento macroeconómico. A economia é cíclica por isso espero que a Colômbia e a Ara recuperem nos próximos tempos.
Há aqui uma situação interessante que sinto obrigação de referir: nesta indústria do retalho alimentar o comércio eletrónico não está a penetrar, não está a crescer, da forma como muitos, eu incluído, previram.
É possível que por os produtos serem perecíveis, ou por não serem exatamente homogéneos, a maior parte dos consumidores vá sempre sentir a necessidade de ver, segurar e porventura cheirar os produtos alimentares que quer comprar.
Neste contexto a fraca aposta da Jerónimo Martins nos seus canais online pode ter poupado dinheiro.
Na conferência de imprensa relativa aos resultados do 3T23 a gestão da JMT revelou que, em vez de entrar na Roménia, como toda a gente esperava já há alguns anos, vai entrar antes na Eslováquia.
A entrada na Eslováquia provavelmente será menos arriscada e envolverá menos investimento do que na Roménia, por outro lado o potencial de receitas e lucros a longo prazo também não será tanto.
Isto porque a Eslováquia só tem cerca de 5,4 milhões de habitantes, enquanto a Roménia tem cerca de 19,1 milhões.
7. Tipo de Play
A JMT é simultaneamente uma play defensiva e uma play de crescimento, pelo que tem bons ingredientes para continuar a apelar aos investidores.
8. Conclusão
Se eventualmente abrir uma vaga no TOP10 Lisboa – o portfolio público que reúne as 10 ações portuguesas que considero mais atrativas para investimentos a longo prazo – a JMT será uma forte candidata à entrada, pelo seu track record, estrutura acionista sólida, balanço equilibrado, potencial de crescimento e valorização aceitável.
É possível que devido à potencial deflação alimentar e regresso dos ucranianos a casa em 2024 os resultados não sejam tão bons quanto os analistas esperam (receitas de 32.965 M€ e lucro de 795 M€). Se tal falha em relação às estimativas ocorrer é possível que se consiga apanhar a JMT a preços mais baixos do que os atuais.
O preço ideal seria 15 vezes o lucro de 2023, ou seja, cerca de 11.325 M€ de valor de mercado, ou 18,02 € por ação.
Ao longo dos anos as ocasiões em que foi possível comprar a JMT “barata” foram raras, pelo que vamos ver se tal oportunidade ocorre em 2024 ou 2025.